Muitos ouvintes desconhecem a carga semântica que é evocada através dos termos mudo, surdo-mudo e deficiente auditivo. Para a maioria dos ouvintes alheios à discussão sobre a surdez, o uso da palavra surdo parece imprimir preconceito, enquanto o termo deficiente auditivo aparenta ser politicamente correto. Em seu livro, “LIBRAS – Que língua é essa?” (2009) Audrei Gesser, nos esclarece sobre essa questão com a seguinte citação:
Essa história de dizer que surdo não fala, que é mudo, está errada. Eu sou contra o termo surdo-mudo e deficiente auditivo porque tem preconceito... Vocês sabem quem inventou termo deficiente auditivo? Os médicos!Eu não estou aqui só para vocês aprenderem LIBRAS, estou aqui também para explicar como é a vida do surdo, da cultura, da nossa identidade... (professora surda, 2002).
O que teria o surdo de deficiência, se a única coisa que nos difere deles é a língua? São cidadãos como todos os ouvintes, pensam, debatem, se deslocam, têm sua identidade e cultura, aliás, uma cultura que vem de uma história bem triste, onde não eram vistos como pessoas, eram excluídos da sociedade e as decisões para/com eles tomadas, partiam de ouvintes extremamente preconceituosos.
Em nossa sociedade, encontramos muitas pessoas ouvintes que não usam tão bem seus ouvidos quanto os surdos usam seus olhos para ouvir. O surdo não precisa ser oralizado para se integrar na sociedade ouvinte, é disso que fala Gesser (2009) quando diz que “oralizar é sinônimo de negação da língua dos surdos. É sinônimo de correção, de imposição de treinos exaustivos, repetitivos e mecânicos da fala”.
Devemos respeitar a língua de sinais e o direito do surdo a ser educado em língua de sinais. Assim como, quando parte do surdo, a vontade de oralizar deve ser respeitada, pois partiu dele e não foi imposta e opressora, vinda de todos os quadrantes, como de fato, acontecia no século passado e continua acontecendo em certos locais.
Os surdos têm uma identidade e uma cultura própria, assim como todos nós temos características culturais que marcam o jeito de ver, sentir e se relacionar com o mundo. O surdo não tem nada de excepcional, é a sociedade ouvinte que o torna excepcional. Deve uma pessoa ser tratada como excepcional ou deficiente por dominar uma língua que faz parte do nosso país?
Como podemos ver em seu próprio nome “Língua brasileira de sinais”, essa língua deveria estar nas escolas, nos mercados, bares, restaurantes, espaços públicos e privados e na casa de todos os brasileiros, assim como na ilha de Martha’s Vineyard, nos Estados Unidos, onde é muito comum ver as pessoas que oralizam, sinalizarem sem nenhuma cerimônia, o que permite o surdo viver como parte integrante da sociedade.
Nesta ilha, durante mais ou menos dois séculos, a população apresentava um elevado número de cidadãos surdos. A cada 155 nascimentos um era de um surdo. Esta ilha foi analisada por três séculos, várias especulações e resconstruçoes de árvores genealógicas foram feitas para tentar descobrir a primeira vez em que o gene de mutação ocorreu e como essa situação genética se espalhou pela população da ilha, mas não se chegou a nenhuma conclusão definitiva.
Em 1985, um repórter britânico, deixa registrada essa atitude social de aceitação da surdez que fez dessa ilha um local bilíngüe, onde o inglês e a língua de sinais eram usados por seus moradores em todos os seus contextos:
Você faz uma chamada nas mediações – eles não têm coisas como o chá das tardes. A língua falada e a língua de sinais estarão tão misturadas na conversa, que você passa de uma para outra, ou usa as duas de uma vez só, quase inconscientemente. Metade da família fala, muito provavelmente, metade da família não, mas os surdos não estão desconfortáveis em sua privação, porque a comunidade, tem se ajustado à situação perfeitamente (Groce, 1985:53).
Alexander Graham Bell, inventor do telefone, professor de surdos e defensor enérgico do oralismo que julgava a língua de sinais imprecisa e inferior à fala oral, usou o caso da ilha de Martha’s Vineyard como base da sua investigação na questão da hereditariedade da surdez, mas não conseguiu explicar o fato de alguns pais surdos não terem filhos surdos. O maior agravante das especulações de Bell não estava apenas na falta de comprovação do que dizia, mas na injustiça e irresponsabilidade científicas em liderar campanhas proibindo o agrupamento de surdos, já que definia a surdez como “anormalidade da raça humana”.
Atualmente, a minoria da sociedade é consciente dessa desumanidade cometida contra os surdos no passado e que resultou no crime da privação linguística e no estigma psicológico que os surdos carregam até hoje em nossa sociedade.
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